Relação com a disciplina

Da Eugenia à Inclusão: a construção da identidade das pessoas com deficiências

Neste texto buscamos refletir sobre a construção da identidade de pessoas com deficiências a partir de dois paradigmas distintos: o da eugenia e o da inclusão. No primeiro, só é parte integrante da sociedade aquele indivíduo que é atrelado à uma soma de características que resultam em um padrão cartesianamente estabelecido; já o segundo, não é fundamentado pela exclusividade de um determinado modelo de indivíduo como componente social, mas é na soma e inclusão das diferentes identidades  que são estabelecidos os elementos fundantes da coletividade humana. Para melhor ilustrar a correlação de tais paradigmas com a nossa reflexão, abordaremos alguns de seus aspectos mais gerais, como recortes históricos e ponderações filosóficas acerca da eugenia e, posteriormente, discutiremos o movimento de ressignificação da identidade daque les grupos minoritários da sociedade mais precisamente os de pessoas com deficiências.

De início, ao conjugar elementos através de uma perspectiva histórica, que possuem a eugenia como seu núcleo de discurso tem suas camadas mais externas representadas por múltiplos atores, adeptos e colaboradores do discurso de higienização da raça humana, de tal forma que esta “ciência do estudo dos mecanismos para conseguir, favorecendo a evolução natural, o aperfeiçoamento da raça humana” (CONT, 2008, p. 206), seja relacionada com o assunto fundador do nosso projeto: a inclusão social de pessoas com deficiência.

Um conceito importante que podemos estabelecer como paralelo à teorização e a prática da eugenia, é o conceito de loucura como descrito por Foucault. A construção deste conceito se deu a partir do século XVI e o início da criação da necessidade de internação no século XVII (VIEIRA, 2007). A segregação desta classe de pessoas caracteriza uma prática eugênica, podendo ser levada aos casos extremos de sacrifício humano junto aos outros segregados que surgiram na teoria eugênica como veremos a seguir.

As práticas eugênicas tiveram sua expressão máxima no período da Alemanha nazista de Hitler, entretanto, foi na Inglaterra que tudo começou. Segundo Pietra Diwan (2007), foi com o pesquisador britânico Francis Galton, imbuído dos preceitos de seu primo (Charles Darwin) sobre: “Só os mais bem adaptados sobrevivem e os mais bem ‘equipados’ biologicamente têm maiores chances de se perpetuar na natureza”, isto é, o evolucionismo e com o respaldado do medo burguês em ver seus trabalhadores degradados fisicamente, por um aparente caos social e ao crescente alinhamento da ideologia burguesa ao darwinismo social, que Galton consegue divulgar seus estudos, que são aceitos pela classe burguesa, que é tida como “os mais capazes, os mais fortes, os mais inteligentes e os mais ricos” (DIWAN, 2007).

Vale lembrar que tanto Darwin, quanto Galton viviam numa sociedade que sofria com os resultados da revolução industrial do final do século XIX. O período era de um capital que não parava de crescer em detrimento de operários que eram submetidos às condições desumanas de trabalho e vida. Galton acreditava que os trabalhadores eram miseráveis porque possuíam elementos genéticos degenerantes. Para ele, nada tem a ver a condição miserável a que são submetidos a viver, mas é da natureza do indigente ser como tal (CONT, 2008).

A teoria galtoniana acredita na diferenciação de elementos patentes e latentes que estariam presentes na fecundação, assim os elementos patentes construiriam o indivíduo a partir de seu nascimento e os latentes se desenvolveriam ao longo da vida podendo ainda ser potencializados ou suplementados por novos elementos latentes ao longo do desenvolvimento da pessoa humana. O argumento de sua teoria, implica na segregação como forma de predispor a melhor combinação destes elementos, e até mesmo evitar a necessidade de um trabalho excessivo de elementos latentes ao longo da vida deste indivíduo.

Ainda no texto de Diwan (2007), há o histórico eugênico no Brasil. Foi com o médico paulista Renato Kehl, que as ideias de higienização racial foram difundidas no território nacional. No início do século XX, a “solução” foi embranquecer a população. Para tanto, houve o incentivo nacional em acolher imigrantes, os brancos, para procriar com a massa negra e indígena que aqui existia. Apesar do paradoxo racial, implantar a eugenia no Brasil era visto por cientistas e intelectuais do período como um caminho para elevar um país povoado por uma legião de miscigenados. Entretanto, os “grandes cérebros” entraram em desespero ao perceber que o estímulo de acolher imigrantes fez por fundar uma população toda misturada. Foi no inicio dos anos 30, que Renato Kehl organizou a Comissão Central Brasileira de Eugenia (CCBE), fortemente alinhada à Comissão da Sociedade Alemã d e Higiene Racial, com a qual se correspondia “Por meio da CCBE, Kehl aproximou-se de Oliveira Viana, então consultor jurídico do governo provisório de Getúlio Vargas” (DIWAN, 2007).

É nessa linha de livrar a humanidade do caos social que se justifica a eugenia durante as primeiras décadas do século XX, nos EUA, Alemanha, países escandinavos e no Brasil, desde sua concepção até sua expressão máxima, retratada no documentário Homo Sapiens 1900. Cohen apresenta um longa metragem onde a eugenia não é um fato negativo se pensada como o melhoramento da população. No entanto, a problemática se dá na pergunta: o que é melhor? Quando partimos do pressuposto que melhorar, significa eliminar as pessoas com deficiência  e embranquecer todos, aí sim temos um problema, pois é assim que se tem o homem branco, heterossexual, cristão e sem deficiências, considerado como um padrão de superioridade, moldando toda a sociedade. A ideia é de uma limpeza racial, onde a “diversidade humana é uma aberração” (REIS, 2009).

É evidente a forte influência do discurso e práticas eugênicas nos aparatos administrativos dos mais diferentes países pelo mundo durante as primeiras décadas do século passado. Infelizmente este não é um discurso esquecido, mesmo que de maneiras mais sutis ou mascaradas, existem práticas nos dias atuais que de algum ponto de vista podem ser comparadas com as práticas de eugenia ainda que elas tenham diversos outros pressupostos como saúde pública, por exemplo. No limite, resquícios da eugenia poderiam ser encontrados materializados pelo incentivo, por exemplo, do Estado brasileiro em distribuir gratuitamente pílulas, anticoncepcionais, preservativos e até mesmo operações de esterilização para toda população.

As práticas eugênicas estão presentes no nosso cotidiano. De uma maneira tanto perversa quanto no início do século XX. Isso porque reproduzimos e temos a eugenia de maneira inconsciente. Não são raras as vezes que são aplaudidos atos, como por exemplo, de uma cidade ter escolas que sejam destinadas exclusivamente para pessoas com deficiência, pois pensamos que uma atitude como esta é fruto de uma política que se importa com os desfavorecidos socialmente. Mas isto é absurdo, posto que esta é mais uma maneira que se tem para excluir os deficientes da sociedade. A eugenia se faz presente de uma forma mais velada do que no início do século passado. Talvez as pessoas não tenham consciência de seu pensamento, pois essa cultura eugênica foi construída e inserida de forma tão sutil que não percebem estarem reproduzindo este discurso.

Em contraponto a este modelo começam a surgir no final do século XX,  movimentos em defesa  da construção de uma sociedade mais democrática e justa, onde recursos e serviços pudessem ser usufruídos por qualquer pessoa, independente de etnia, classe social e/ou condições físicas, sensoriais e intelectuais. Neste paradigma inclusivo abrem-se  possibilidades  para o  encontro entre pessoas  com características diversas, o que até então não era comum, como por exemplo, a convivência entre pessoas com e sem deficiências. Configura-se assim outro  paradigma na relação da sociedade com as pessoas com deficiência, o paradigma da inclusão, que implica em mudanças nos espaços sociais para que qualquer pessoa possa frequentá-los.

A diferença entre os dois paradigmas – eugenia e inclusão -  aqui apresentados é latente. Na sociedade eugênica, a pessoa com deficiência é eliminada ou segregada, a sua posição é de um objeto, pois não sendo parte integrante da sociedade, não tem possibilidades de desenvolver-se por si só, uma vez que não corresponde ao modelo ideal fixado, quer seja, o do homem “normal”. No paradigma da inclusão, que emerge na  sociedade pós-moderna, as pessoas com deficiência e outras pertencentes às chamadas  minorias como, mulheres, pobres, negros, diferentes crenças, entre outros na sociedade através da ressignificação de suas posições,  uma vez que, pelo menos em tese, podem ocupar o lugar de  sujeitos, com mais possibilidades  de circulação social, uma vez que  há uma preocupação da sociedade em adaptar  espaços e recursos para que todos possam acessá-los e utilizá-los.

Em suma, tratamos da construção da identidade da pessoa com deficiência em dois momentos dicotômicos, enquanto um considera o indivíduo como objeto que é excluído socialmente, o outro assenta-se numa perspectiva que assume e inclui  diferentes identidades, ressignificando o lugar  das pessoas com deficiência como  sujeitos ativos, participantes da vida em comunidade. Pensamos que desta forma o nosso objetivo de refletir sobre o processo de construção da identidade de pessoas com deficiência tenha sido atingido.
  
Referências

COHEN, P. Homo Sapiens 1900. Mais Filmes. Duração: 88 mim, 1998.

CONT, V. D. Francis Galton: eugenia e hereditariedade.

DIWAN, Pietra. Eugenia, a biologia como farsa. Disponível em: 
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/eugenia_a_biologia_como_farsa_imprimir.html. Data do último acesso: 20/09/2013.

HALL, S.  Identidade Cultural na pós-modernidade. Disponível em: http://sapiens.ya.com/pongnet1/hall.htm

NAINALVA R. Em: Análise do filme Homo Sapiens 1900. Direção de Peter Cohen, em interface com o texto de Jeffrey Herf de tema: a revolução conservadora de Weimar. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/resenhadefilmes/1892195. Data do último acesso: 21/09/2013

VIEIRA, P. P.. Em: Reflexões sobre a História da Loucura de Michel Foucault. Revista Aulas, Campinas, nº 03, março 2007.